quarta-feira, 30 de junho de 2010

CRIME
O monstro do sistema
Pedrinho, que diz ter matado mais de 100 pessoas, é o produto máximo de uma estrutura carcerária que só gera violência
RICARDO MENDONÇA, com fotos de OTÁVIO DIAS DE OLIVEIRA




TATUAGENS Para reforçar o ar ameaçador, o aviso: 'Mato por prazer'
O cidadão Pedro Rodrigues Filho é muito considerado em sua comunidade. Na Penitenciária do Estado, em São Paulo, é uma espécie de ídolo. Num ambiente em que 16% dos moradores já mataram alguém e as pessoas têm apelidos como Fumacê, Leprinha e Nego Baitola, é a ele que chamam, com reverência, de Pedrinho Matador. Maior homicida da história do sistema prisional, ele se orgulha de ter assassinado mais de 100 pessoas, inclusive o próprio pai. E, para que ninguém tenha dúvidas, tatuou no braço esquerdo: 'Mato por prazer'. Sua especialidade é esfaquear a vítima no abdome. Já matou na rua, no refeitório, na cela, no pátio e até no 'bonde' - o camburão, na linguagem dos bandidos. Perante o juiz, afirmou ter eliminado um detento porque 'não ia com a cara dele'. Em outro caso, foi um colega de cela que roncava demais. Pedrinho pisou na cadeia pela primeira vez em 24 de maio de 1973 e ali viveu toda a idade adulta. Prestes a completar 30 anos de detenção, período máximo de prisão de acordo com a lei penal, ele acredita que será solto no dia 25. Na verdade, isso não acontecerá. Sua pena foi estendida por causa dos crimes que ele cometeu atrás das grades. Pedrinho até poderia recorrer da decisão, mas ele jamais tomou conhecimento dela. Como 75% dos detentos, ele não possui advogado. Aos 48 anos, o criminoso é o produto máximo do sistema carcerário brasileiro. No período que passou atrás das grades, Pedrinho viveu de acordo com as regras não escritas que governam as cadeias brasileiras. Transgrediu apenas uma sobreviveu. Dificilmente um encarcerado dura tanto tempo.
Se a história de Pedrinho fosse transformada em filme, pareceria inverossímil. A violência apareceu antes de seu nascimento. Ele veio ao mundo em 1954, numa fazenda em Santa Rita do Sapucaí, sul de Minas Gerais, com o crânio ferido, resultado de chutes que o pai desferiu na barriga da mãe durante uma briga. Conta que teve vontade de matar pela primeira vez aos 13 anos. Numa briga com um primo mais velho, empurrou o rapaz para uma prensa de moer cana. Ele não morreu por pouco. Como quatro em cada cinco presidiários, Pedrinho tem baixa escolaridade. Nunca foi à escola e caiu precocemente na bandidagem. Seu primeiro crime foi aos 14 anos, quando o pai foi demitido do cargo de vigia da escola municipal, sob a acusação de roubar merenda. Pedrinho matou a tiros o prefeito da cidade, que havia ordenado a demissão, e depois outro vigia, que supunha ser o verdadeiro ladrão. Fugiu para Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo, onde moravam seus padrinhos. Conheceu a viúva de um líder do tráfico, apelidada de Botinha, e foram viver juntos. Assumiu as tarefas do falecido e logo foi obrigado a eliminar alguns rivais, matando três ex-comparsas. Morou ali até que Botinha foi executada pela polícia. Pedrinho escapou, mas não deixou a venda de drogas. Arregimentou soldados e montou o próprio negócio.
MORADIA Desde 1992 ele é mantido em cela individual, para não matar os vizinhos. Nela, guarda quadros religiosos, pinturas de Bin Laden e livros de Sidney Sheldon. As tatuagens: cruz e anjos sobre o nome da noiva morta
Foi quando encontrou Maria Aparecida Olímpia, por quem se diz apaixonado até hoje - tem seu nome tatuado no braço, perto da inscrição 'Sou capaz de matar por amor'. Ela engravidou, mas não chegou a ter o bebê. Certo dia, ao entrar em casa, Pedrinho encontrou-a morta a tiros. Em busca de vingança, matou e torturou várias pessoas, tentando descobrir os responsáveis. Não conseguiu, até que o mandante, um antigo rival, foi delatado por uma ex-mulher. Pedrinho e quatro amigos o visitaram durante uma festa de casamento. Deixaram um rastro de sete mortos e 16 feridos. Pouco depois de completar 18 anos, com várias mortes nas costas, Pedrinho finalmente foi preso, denunciado pelo pai de uma namorada. Atrás das grades ele perdeu contato com sua quadrilha, ganhou fama de matador e aprendeu a ler e a escrever. Além de se aperfeiçoar na capacidade de eliminar o próximo sem sofrer nenhum tipo de perturbação. Pedrinho é a descrição perfeita do que a medicina chama de psicopata - alguém sem nenhum remorso e nenhuma compaixão pelo semelhante. Os psiquiatras Antonio José Elias Andraus e Norberto Zoner Jr., que o analisaram em 1982 para um laudo pericial, escreveram que a maior motivação de sua vida era 'a afirmação violenta do próprio eu'. Diagnosticaram 'caráter paranóide e anti-socialidade'.
Quando Pedrinho foi para trás das grades, o carro do ano era o Ford Maverick, precisava-se de telefonista para fazer um interurbano e o Chile ainda não havia sequer entrado na ditadura Pinochet. De lá para cá o matador se transformou num tratado ambulante sobre a vida na cadeia. Informado de que seus inimigos armavam uma emboscada, ficou sabendo também que era fácil comprar de um carcereiro uma faca para defender-se. Tratou de providenciar uma. No meio do pátio, um preso lhe deu o bote. Ao sujeito que o atacou, juntaram-se mais quatro. A multidão fez uma roda para ver o massacre. Depois de alguns minutos de pancadaria, porém, três já estavam mortos e Pedrinho continuava lutando. Assustados, os outros dois fugiram.
O bandido ganhou notoriedade por essas matanças. Mas ele gosta de reforçar sua fama contando outras histórias, muitas das quais não se sabe ao certo se aconteceram ou não. Como muitos assassinos em série, seus depoimentos costumam misturar realidade e fantasia e boa parte dos cadáveres que se orgulha de ter produzido nunca foi encontrada. Pedrinho conta, com orgulho, que matou o próprio pai, depois que ele matou sua mãe desconfiado de traição. Diz que, para vingá-la, rasgou o peito do pai a facadas e comeu um pedaço de seu coração. O problema é que, em depoimento a um psiquiatra, ele contou outra história. Disse que o pai foi assassinado por familiares de uma amante. Assim como esse, vários relatos feitos por ele têm contradições. Por isso, não se sabe ao certo quantas pessoas ele assassinou. Em alguns crimes, simplesmente não há registro documental. Na penitenciária, segundo diz, matou um preso apelidado de Raimundão, que extorquia familiares de detentos, e jogou-o no fosso do elevador. Funcionários da instituição se lembram do caso, mas Raimundão não aparece na lista de condenações de Pedrinho. Tudo mostra que o inquérito não identificou o assassino ou a morte foi assumida por outro preso - 'favor' que os líderes da bandidagem costumam pedir a membros menos importantes das quadrilhas.
Perfil - Pedrinho Matador
Nome
Pedro Rodrigues Filho
Biografia
Mineiro de Santa Rita do Sapucaí, tem 48 anos. Nunca estudou, foi traficante na adolescência e passou toda a vida adulta na cadeia - desde os 18 anos
Ficha
Afirma ter matado mais de 100 pessoas. Fez a primeira vítima aos 14 anos. Suas condenações por homicídio somam 128 anos de detenção
Comportamento
Matou um colega de cela porque 'roncava demais', outro porque 'não ia com a cara dele'. Bateu no médico traficante Hosmany Ramos e prometeu matar o estuprador conhecido como Maníaco do Parque
O aspecto que mais chama a atenção na biografia de Pedrinho é a falta de informação. Ele não sabe quase nada a respeito de seus processos. Entrevistado, surpreendeu-se ao saber que constam apenas 18 acusações. 'Só isso? Não pode ser tão pouco assim', diz. Muitos documentos antigos desapareceram num buraco negro antes da informatização dos tribunais. 'O período mais caótico para os registros penitenciários no Brasil são os anos 70. Muitos documentos sumiram e, para fazer um levantamento dos históricos dos criminosos desse período, a fonte mais confiável são os depoimentos verbais', explica o sociólogo Túlio Kahn, ex-consultor do Ministério da Justiça. Por isso, é provável que Pedrinho tenha matado menos do que diz, porém mais do que aparece em sua ficha, numa mostra de ineficiência da polícia e do Judiciário.
A história do Matador mostra como o sistema carcerário fez com que um bandido perigoso, com problemas psiquiátricos, tivesse sua condição ä agravada - tendo como conseqüência uma matança ainda maior. Com o passar do tempo, Pedrinho começou a puxar a faca por motivos cada vez mais fúteis. Toda vez que foi transferido - para nove instituições diferentes -, Pedrinho cometeu mais crimes. Em 1985, teve a honra de inaugurar o Centro de Readaptação de Taubaté, o Anexo, um regime especial para os presos que não se adaptam a lugar nenhum. De 1992 a 2002, ficou completamente isolado, numa espécie de solitária, onde só tinha contato com os carcereiros. Distraía-se jogando paciência e fazendo ginástica. Há um ano, Pedrinho voltou para a Penitenciária do Estado, onde tem comportamento classificado como 'exemplar'. É o coordenador da limpeza da escola, diz que está mais calmo e que, de inimigo, só tem o Maníaco do Parque, que jurou matar porque não admite violência contra mulheres.
Ao completar 30 anos de prisão, Pedrinho apresenta à Justiça uma questão raríssima: libertá-lo ou não? Dúvidas como essa aparecem no máximo uma vez por ano, segundo um diretor da Penitenciária do Estado, porque poucos presos sobrevivem tanto tempo. Os casos mais famosos são o de Chico Picadinho, o assassino em série que saiu do presídio apenas para continuar confinado no manicômio judiciário, e o do Bandido da Luz Vermelha, que foi jogado nas ruas como um extraterrestre e morreu numa briga meses depois. Em janeiro de 1997 uma defensora pública solicitou a recontagem da pena de Pedrinho para pedir sua soltura em 2003. O pedido foi negado por um juiz, que citou um item do Código Penal segundo o qual crimes cometidos depois do início do cumprimento da pena implicam nova contagem. Com essa interpretação ele só sairá em 2017. O criminalista Rodrigo Dell'Acqua e o promotor Marcelo Mendroni concordam com a tese. Afirmam, no entanto, que a decisão poderia ser questionada em tribunais superiores. Como um recurso demoraria e Pedrinho não tem sequer advogado, é certo que o matador não voltará à rua pelo menos nos próximos meses.

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