quarta-feira, 30 de junho de 2010

A Fera de Macabu


No local apontado pela seta, onde é hoje a pista de
atletismo do Colégio Estadual "Luiz Reid", foi montada
a forca que executou Coqueiro, a "Fera de Macabu"
Na época das ordenações foi rara a aplicação da pena de morte em pessoas de qualidade. A forca (com ou sem o agravamento da mutilação posterior do cadáver), como pena desonrosa que era, não se aplicava a fidalgos, executados, sempre, conforme o costume, pela degola no patíbulo ou no pelourinho.

Quem vasculhar os relatos da punição criminal no Brasil não encontrará mais do que um punhado de casos envolvendo a elite de então - todos executados em Salvador. Paulo de Carvalhal, degolado pelo assassinato, em 1607, de Francisco de Barbuda, septuagenário e cavalheiro da casa real. Coronel Fernão Barbalho Bezerra, senhor de um engenho na freguesia da Várzea, em Pernambuco, degolado em 1687 pelo assassinato da mulher e de três de suas filhas, porque, "irado", suspeitou que uma delas, justamente a que conseguiu escapar da "carnificina", recebia "a certo amante, que coberto com o véu da noite se atrevia a profanar o seu lar doméstico". Em 1721, foi a vez do coronel Antônio de Oliveira Leitão, pelo assassinato em, Vila Rica, Minas, de sua própria filha, que suspeitava ter uma relação amorosa não-autorizada. José Gurgel do Amaral, "célebre criminoso" em Minas, degolado em 1722, em "alto cadafalso". Em 1723, João Leme da Silva, preso em Itu, São Paulo: "a degola era uma forma de suplício honroso, em que se reconhecia a nobreza dos bandeirantes". Finalmente, conforme relato do Conde de Sabugosa, em 1732, foram decapitados o mestre de campo Domingos Dias do Prado e seu irmão coronel Francisco Dias do Prado, "filhos de S. Paulo, e das principais famílias daquela capitania", pelos excessos que cometeram. Em matéria de crime comum, não aparecem outras ocorrências.

No Império também seriam raras: num país acostumado ao enforcamento de escravos e assassinos pobres, a execução do fazendeiro Manuel da Mota Coqueiro, a "fera de Macabú", em Macaé, no Rio de Janeiro, em 1855, foi uma exceção. O caso, situado no "ápice" da já mencionada luta da Nabuco de Araújo contra a impunidade, entraria para a história, ironicamente, como erro judiciário.


Prisão de Felipe dos Santos,
Museu Antônio Parreiras, Niterói - RJ
O outro lado da moeda: a impunidade do arbítrio. Filipe dos Santos, o único enforcado pela Revolta de Vila Rica, em 1720, foi vítima de um julgamento sumário, caracterizado pelo atropelamento "das comezinhas fórmulas". O Conde de Assumar, em justificativa dirigida por carta ao rei de Portugal, diria depois: "Sei que não tinha competência nem jurisdição para proceder tão sumariamente... mas uma coisa é experimentá-lo, outra ouvi-lo; porque o aperto era tão grande, que não havia instante que perder". José César de Menezes, governador de Pernambuco entre 1774 e 1787, "infatigável na punição dos delinqüentes", seria lembrado depois por ter mandado executar um famoso e sanguinário bandoleiro, "Cabeleira", a despeito de apenas um dos membros da junta de justiça (instituída na capitania em 1735) ter votado a favor da pena de morte. Em 1834, Pinto Madeira foi executado, no Crato, Ceará, não como rebelde, mas como assassino, sem que as autoridades locais lhe concedessem o direito de recorrer da sentença, conforme a regras processuais em vigor34. Um despacho do Ministro da Justiça Gama Cerqueira (1877) sobre a extinção de um quilombo em Iguaçu, província do Rio de Janeiro, é peça eloqüente sobre o abismo entre a lei e a prática: "Os meios empregados para suprimir esse valhacouto de ladrões, constante ameaça contra os lavradores da circunvizinhança, não são dos mais confessáveis, mas surtiram excelente efeito. Igual não resultaria de mais regulares". Para o ministro, "na esfera da atividade da polícia nem sempre é possível proceder de modo irrepreensível perante a lei".

No processo de consolidação da Independência, dois episódios patrocinados por oficiais estrangeiros a serviço do Império do Brasil chamam a atenção pela indiferença das autoridades.

Em novembro de 1822 foram executados, sem processo, 51 negros aquilombados a mando do general francês Pedro Labatut, comandante do Exército Pacificador da Bahia. Segundo o relato do próprio Labatut, "mesmo presos e amarrados, insultavam os nossos com o nome de 'caibras', que lhes foi ensinado pelos lusitanos; eu os mandei fuzilar [...]". João José Reis assinala ser esta "a mais brutal punição contra escravos rebeldes baianos que se tem notícia".


John Pascoe Grenfell
Em Belém, província do Pará, em outubro de 1823, o oficial inglês John Pascoe Grenfell determinou o aprisionamento de 256 soldados e paisanos, envolvidos em "desordens", nos porões do brigue Diligente, ancorado no porto, dando ensejo a uma experiência precursora de massacre de presos que jamais deixaria de ocorrer entre nós. A descrição, a partir do relato de quatro sobreviventes:

"Encerrados ou atochados em tão estreito recinto, esses infelizes, que pertenciam a diversos partidos e cores, que convinha extremar, romperam logo em gritos e lamentos, exasperados pelo calor e falta de ar, que experimentavam, ouviram-se algumas ameaças contra a guarnição de bordo [...] Seguiu-se um violento frenesi, sucedido logo depois por acessos de raiva e furor, que os levou a lançarem-se uns contra os outros [...] A bárbara guarnição do navio [...] dirigiu alguns tiros de fuzil para o porão e derramou dentro uma grande porção de cal, cerrando-se logo a escotilha [...] Por espaço de duas horas ainda se ouviu um rumor surdo e agonizante [...] Eram sete horas da manhã do dia 22 quando se correu a escotilha do navio em presença do comandante [...] Um monte de duzentos e cinqüenta e dois corpos, mortos, lívidos, cobertos de sangue, dilacerados [...]".

Como informa o Barão do Rio Branco, Grenfell seria submetido a conselho de guerra, mas como a ele "nenhuma responsabilidade podia caber pela desgraça ocorrida a bordo do Diligente", foi absolvido, depois promovido a almirante e lembrado como um "dos maiores nomes da nossa História Naval.

Nossos príncipes também exercitaram a dialética do terror e da clemência. D. João VI, ao ser coroado no Rio de Janeiro, determinou o encerramento das devassas da "revolução pernambucana" de 1817 e concedeu perdão aos que ainda não se achavam presos: vários líderes do movimento já haviam sido executados em Salvador e em Recife. Oliveira Lima registra a existência de 83 presos condenados à morte na Corte, em julho de 1818, não executados por falta de "assentimento real".

D. Pedro I (depois inclemente para com os rebeldes da Confederação do Equador, em 1824), para que os "desgraçados" também fossem "participantes da geral alegria" decorrente da sua coroação, comutou, "nas imediatas", a pena de morte dos réus que "há largo tempo se acham presos [...] sofrendo miséria, provações e horrores" (Decreto de 26.11.1822). A justificativa, além de todo o simbolismo ideológico da graça no perfil do novo imperador, foi a de que, pelo grande lapso de tempo decorrido, as execuções "em vez de produzir o saudável horror do delito" haveria de estimular um sentimento de "piedade".

Durante o Império, são editados no Brasil o Código Criminal (1830) e o Código de Processo Criminal (1832). Não fosse o paradoxo da escravidão, da pena de açoite, poder-se-ia dizer que adotamos um regime punitivo tecnicamente liberal. A incidência da pena de morte foi drasticamente reduzida (apenas para casos de homicídio, latrocínio e rebelião de escravos), as execuções passaram a ser realizadas de forma austera, sem o espetáculo da mutilação e da exposição do cadáver, com os julgamentos se efetivando por um conselho de jurados formado por doze cidadãos, todos "eleitores" (o que, na época, significava dispor de poder econômico) e de "reconhecido bom senso e probidade".

Aliás, os argumentos para a manutenção da pena de morte no Código Criminal do Império, após intenso debate político, foi a própria escravidão e a necessidade de produzir exemplos. O pronunciamento de Paula e Souza na Assembléia Legislativa é revelador:

Quem duvida que tendo o Brasil três milhões de gente livre, incluídos ambos os sexos e todas as idades, este número não chegue para arrostar dois milhões de escravos, todos ou quase todos capazes de pegarem em armas! Quem, senão o temor da morte, fará conter essa gente imoral nos seus limites? A experiência tem mostrado que toda vez que há execuções em qualquer lugar do Brasil, os assassinos e outros crimes cessam, e que ao contrário, se se passam alguns anos sem execuções públicas, os malfeitores fazem desatinos e cometem todo o gênero de atrocidades. Daqui se vê que essa pena é eficacíssima.

Além das rebeliões, havia a ameaça constante do crime de morte praticado pelo escravo contra seu senhor. E em relação a tal delito, a monarquia não poderia ser tolerante. Em 1829, Pedro I decretou que o homicídio do senhor por escravo era indigno da "imperial clemência": execuções imediatas.

Em 10 de junho de 1835, como subproduto das revoltas de Carrancas em Minas Gerais (1833) e dos Malês na Bahia (1835), foi editada uma lei que criou um estatuto jurídico criminal diverso para os escravos. Pena de morte para os que matarem, por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem qualquer outra grave ofensa física a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes que em sua companhia morarem, a administrador ou feitor e às suas mulheres.

Além disso, não seria necessária a unanimidade dos votos dos jurados e da decisão condenatória não caberia qualquer recurso. Com o tempo, voltaria a ser admitido o pedido de graça ao imperador - a única chance para o escravo condenado.

O enforcamento de escravos era rotineiro, mas o sentimento de impunidade permanecia intacto. Em 25 de maio de 1836, o Correio Oficial noticiou o sepultamento de um negociante, ferido com uma facada no peito, dada por um negro. A opinião do redator parece despida de lógica:

"De nada aproveitou a esse malvado assassino a pena última aplicada nesse mesmo dia a outro de sua cor e costume: assim a impunidade, tornada habitual, anima os perversos a esses crimes, e expõem a vida dos cidadãos tranqüilos à faca de um negro, que sempre é instrumento da vingança de outrem. Fugiu o assassino. Graças à doçura do nosso Código".

A pena de morte sem recurso, a princípio considerada fundamental para o controle da escravatura e para a proteção de seus proprietários, transformou-se num problema político para a monarquia, cada vez mais acuada no plano interno e externo pela pressão abolicionista. Sua aplicação foi rareando até ser sistematicamente comutada por Pedro II, como ato de "generosidade" do Poder Moderador, e abolida de fato: o último enforcamento por crime comum no Brasil, um escravo, ocorreu em 1876, em Alagoas.

Em 1860, um parecer de Eusébio de Queirós favorável à comutação da pena de morte imposta a um escravo paulista já registrava "a conveniência de ir tornando cada vez mais rara a execução da pena última".

A mudança de atitude do regime escravocrata em relação à pena de morte foi considerada fator de incentivo à violência. Em 1866, o juiz de Araraquara encaminhou relatório ao presidente de São Paulo em que explicita a causa dos crimes praticados pela escravatura: "[...] é a convicção que nutrem [...] de que a pena de morte não é mais exeqüível no país, e que a comutação dessa pena a galés perpétuas lhes trará a isenção do cativeiro, uma espécie de alforria". Dez anos depois, o juiz de Barra Mansa expôs pensamento semelhante ao presidente do Rio de Janeiro: "Em verdade, porém, o que mais tem influído neste município para a produção de tais crimes, é a convicção que reina entre os escravos de que já não há mais forca para eles, e que quem mata o senhor, feitor ou administrador vai trabalhar para o rei em uma ilha, o que consideram eles mil vezes preferível a seu cativeiro".

No mesmo sentido, as impressões de Richard Burton, que viajou por Minas Gerais durante o ano de 1867: "A impossibilidade moral de aplicar a pena última - retirar o criminoso da lista dos vivos - a facilidade de fugir da cadeia e o pouco receio dos trabalhos forçados entre escravos, são fatores que estimulam a vingança".

Raciocínio curioso: os atentados dos escravos contra a vida dos seus senhores e feitores era decorrência da impunidade e não da própria escravidão... Há algo de semelhante entre exclusão e violência nos dias atuais.

O sonho das nossas elites de "higienizar e disciplinar" o espaço urbano na República Velha, com a construção de instituições modelares para o confinamento de vadios, alienados e delinqüentes, a partir de um padrão "civilizado" de tratamento da parcela enferma da sociedade, viraria pó. Esse percurso histórico, até as prisões de hoje, repletas de miséria, de violação de direitos e de réus indefesos, a ponto de explodirem rebeliões quase que semanalmente, seria matéria para outro artigo. Mas se Frederico o Grande pudesse observar, a partir do que está escrito nas leis penais, o que há de furto, roubo, apropriações, tortura, abuso de poder, sonegação de tributos (em pequena e em larga escala), corrupção, tráfico, águas poluídas, mortes no trânsito, no campo e nas favelas, certamente perguntaria se no Brasil ainda há gente livre.



Fonte: Luís Francisco Carvalho Filho, advogado, articulista da Folha de S. Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário